Raphael Nery
Se não fosse o zero, eu não seria nada. E nem você.
“Nada existe a não ser você. E você nada mais é que um pensamento.
Um pensamento andarilho, um pensamento inútil, um pensamento sem lar,
peregrinando desesperado pelas vazias eternidades!”
(O Estranho Misterioso, de Mark Twain)
Desde o início dos meus quinze anos de prática docente na Educação Tecnológica em salas de aula de diferentes instituições, ministrando para diferentes públicos, costumo fazer uma pergunta que muito me intriga, mas para a qual eu já tenho a minha resposta. É uma pergunta bastante subjetiva, que me permite conhecer melhor o ideário dos meus alunos sobre a tecnologia e como eles se relacionam com ela. Dirijo a você, leitor, a mesma pergunta, e peço que pare por alguns segundos para pensar nela: para você, qual foi a mais importante invenção da humanidade?
Todas as respostas são válidas e profundamente individuais. Pessoas mais jovens talvez concluam que foram os smartphones, enquanto seus avós digam que foi o avião. Minha geração certamente pensa que foi a internet, mas as respostas são diversas: o fogo, a agricultura, o motor a vapor, a linha de produção, etc. Para mim, a invenção mais importante da humanidade é o zero. Isso mesmo, o algarismo zero.
Não sei se minha resposta lhe causou estranheza, mas confesso que até eu mesmo me pergunto por que este nível de especificidade, já que o zero é apenas uma parte de um conjunto de invenções que revolucionaram o mundo: a aritmética com seus algarismo indo-arábicos e seu sistema posicional, e a álgebra com suas variáveis, equações, funções, etc. Seria natural pensar isso. Minha fascinação com o zero, entretanto, vem do fato de que tem origem em preceitos filosóficos, religiosos e místicos dos mundos pré-islâmico e hindu.
No senso comum, o zero representa nada, a ausência de valor, aquilo que está esvaziado. Por outro lado, é no vazio que se pode realizar todas as potencialidades. Imaginemos uma sala. Cada uma das suas quatro paredes é algo em si, assim como o teto e o piso, mas é somente no interior da sala, no espaço vazio entre as paredes, teto e piso, que podemos estar. É somente neste espaço vazio que podemos colocar todos os objetos que a transformarão em um quarto, uma sala, um escritório, uma capela ou qualquer outra coisa. O espaço vazio deixa de ser a falta de algo para se tornar a potência de tudo. O zero se constitui então como espaço incriado.
O zero é a face oculta da divindade na cabala, é o nirvana no budismo, é a cessação da identificação com o pensamento na ioga e no mindfulness, ou o espaço negativo dos designers. O zero é um conceito profundo e multifacetado, e por isso mesmo me encanta para além dos tecnicismos do mundo moderno. Perceba que na matemática o zero permite representar dados de qualquer grandeza. Cada zero adicionado à direita de um número o exponencia em dez, significando que com suficientes zeros, podemos mensurar as dimensões de um edifício, o volume de água nos oceanos e até mesmo a distância da Terra em relação a uma estrela. Por outro lado, cada zero adicionado à esquerda de um número (após a vírgula), permite representar coisas muito pequenas, como a concentração de alguma substância em meio líquido, o diâmetro de um fio de cabelo ou a quantidade de energia consumida por um nanorobô.
O sistema de numeração binário, que utiliza somente zeros e uns, é utilizado para representar sinais digitais, que permitem a transmissão de dados em equipamentos eletrônicos e antenas com menor perda, maior velocidade e qualidade. Sem o sistema binário não teria sido possível todo o grande avanço tecnológico dos séculos XX e XXI. Na Índia e na China antigas já existiam estudos sobre sistemas binários de contagem, sendo que o I-Ching, importantíssimo texto filosófico atribuído a Lao-Tsé utiliza este método para compor seus 64 hexagramas.
A pergunta que fiz inicialmente revela muito sobre o nosso ideário e relação com a tecnologia. Pois eu, pessoalmente, e nas minhas práticas educacional e profissional, considero que o fetiche mercadológico construído em torno das novas tecnologias cria uma mística indevida a respeito daqueles que as produzem. Quase como se engenheiros e programadores fossem magos do século XXI que guardam seus grandes conhecimentos ocultos da massa profana. Quando lido com alunos, especialmente adultos e idosos, que apresentam grande resistência em operar computadores, creio que é esta mística que os impede de observarem-se como produtores de tecnologia, e não apenas consumidores.
A tecnologia também é fruto do processo histórico, social e humano; e muito do que foi produzido atualmente já era concebido, estudado e aplicado desde a antiguidade. Nos enxergar como parte deste processo é um primeiro passo para o rompimento das barreiras que nos impedem de construir maestria na relação com o mundo tecnológico.
Minha sugestão ao leitor, portanto, é que cada vez que se sentir defasado ou atrapalhado em relação a novas tecnologias, apenas relaxe e lembre-se de que tudo aquilo que um ser humano desenvolver, você será capaz de, com paciência, compreender e operar. Não foi um figurão estressado do Vale do Silício quem inventou o zero, mas provavelmente algum iogue tranquilo e contente, meditando em paz no interior de um templo remoto.
Instagram: @o.raphaelnery
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